Quem é Alexei Navalny, o homem que desafiou Putin?

Envenenado, preso, boicotado e perseguido pelo Estado, Navalny representa uma Rússia mais livre de seu “czar moderno”

Eduardo Reitz
8 min readJan 24, 2021
Foto por Evgeny Feldman

O homem de olhos azuis e cabelo loiro foi o último a entrar no avião da empresa Pobeda (Vitória, em russo) em Berlim. Junto de sua esposa, Yulia, passou reto pelas fileiras cheias de jornalistas e foi sentar-se em seu lugar. Os jornalistas tentaram entrevistar (ou o menos observar) aquele homem que fora ao inferno e voltou. Mas Alexei Navalny, quatro meses após ser sedado a um leito de hospital, queria apenas um momento de descanso, sentou-se em sua poltrona e passou o voo assistindo a um filme. Momentos antes do avião decolar, o piloto anunciava:

— …Acabamos de saber que o aeroporto de Vnukovo está fechado por motivos técnicos. — O “motivo técnico” estava a bordo na fileira número 13.

Em Moscou uma multidão de duas mil pessoas aguardava por Navalny no aeroporto para recebê-lo como herói — uma imagem que claramente não animava ao Kremlin. Após alguns minutos, o voo 936 foi realocado para o aeroporto Sheremetyevo, longe dos apoiadores de Navalny.

“Garçom” disse Yulia Navalny em um vídeo postado no Instagram momentos antes da decolagem, “nos traga uma vodca, estamos voltando para casa”. A frase ela roubou do filme russo “Brat 2” — um bang-bang de máfia muito popular nos anos 2000. Aquele seria o sentimento dúbio de seu regresso à pátria: para o povo, Navalny era um mártir, para o governo, um terrorista.

Poucos momentos depois de pôr os pés em sua pátria, a polícia russa (que já o esperava no aeroporto) o deteve e o levou como um criminoso. Navalny, contudo, não teve medo e ainda havia dito que aquele era o momento mais feliz nos últimos cinco meses — “eu estou voltando para casa” — acabava de afirmar em uma coletiva de imprensa relâmpago no terminal a caminho do controle de passageiros. Quando Navalny foi levado pela polícia, ele sabia que deixava de ser apenas um homem e acabava de virar um símbolo.

Novitchok e a política internacional

“Em 20 de agosto de 2020, um homem de 44 anos, até então saudável, de repente ficou confuso e começou a suar intensamente em um voo doméstico na Rússia dez minutos depois da decolagem; ele vomitou, caiu e perdeu a consciência”, esclarecia a nota dos médicos do hospital Charité, de Berlim, onde Navalny passou 18 dias em coma induzido.

Deveria ser um voo normal, de Tomsk a Moscou. Navalny estava se sentindo bem, quando de começou a sentir tonturas e desmaiou. O ativista político estava na Sibéria mantendo contato com líderes da oposição. As eleições regionais se aproximavam e o Kremlin sabia da influência de Navalny na opinião pública. O jornal alemão Der Spiegel traria mais tarde a público um relatório detalhado da FSB — uma espécie de Polícia Federal russa — na qual seguiam os passos de Navalny nos últimos dias.

Mais tarde iria se descobrir que o ativista havia sido envenenado, alegadamente em suas roupas íntimas, pela substância novitchok, desenvolvida nos anos 70 na União Soviética. O histórico de intoxicações nos antigos países soviéticos é extenso — e na maioria das vezes usado contra desafetos políticos. Além dos jornalistas Yuri Schchekochkhin e Anna Politkvoskaya, inúmeros políticos homens de negócios e, supostamente, Joseph Stalin foram intoxicados com alguma substância letal.

O avião fez um pouso de emergência em Omsk, na Sibéria, para o homem ser atendido por médicos em terra. Dois dias depois, ele seria levado à Alemanha, por esforços da família, longe da tutela do Estado russo, para ser tratado. Ele ficaria 32 dias em tratamento no hospital Charité, o hospital Humboldt-Universität, em Berlim — uma das mais antigas clínicas da Europa, com mais de 300 anos.

Após a confirmação do uso de uma substância do grupo novitchok, Alemanha e França prepararam sanções à Rússia por uma suposta tentativa de “intimidar a oposição”. Em nota conjunto, os ministros das relações exteriores dos dois países, o alemão Heiko Maas e o francês Jean Yves Le Drian, postularam à União Europeia que a Rússia não teria oferecido uma explicação confiável até então, em outubro de 2020. “Neste contexto, consideramos que não há outra explicação plausível a não ser o envolvimento e a responsabilidade russa. Houve uma tentativa de assassinato em solo russo, contra um oposicionista russo, usando um agente nervoso desenvolvido pela Rússia. Extraindo as conclusões necessárias desses eventos, a França e a Alemanha compartilharão com seus parceiros europeus propostas de sanções adicionais”, continuaram os ministros em nota.

As sanções propostas por Paris e Berlim afetavam precisamente altas autoridades russas, em principal o chefe do FSB, Alexander Bortnikov, e o primeiro vice-chefe de gabinete da presidência russa, Sergey Kirienko. Sanções às autoridades do Kremlin vêm ocorrendo ao menos desde 2014, ao estourar dos envolvimentos do governo na guerra civil ucraniana e anexação da Crimeia. O ministro de relações exteriores de Putin condenou a postura do eixo franco-alemão e contra-sancionou os países e indicou um possível complô contra a Rússia. Ele ainda teria afirmado que Navalny teria sido envenenado no caminho à Alemanha, uma vez que não foi apresentado veneno em seu organismo enquanto era tratado na Sibéria.

Foto pelo autor - Berlim 2018

Desde sua volta à Rússia no último dia 17 de janeiro, Navalny puxou as atenções internacionais ao maior país do mundo. Semanas antes da tentativa de silenciá-lo, o ativista demonstrou apoio às manifestações em Chabarovski, uma região russa, e na Belarus, em que desde agosto encontra-se em protesto contra o ditador Aleksander Lukashenko. À última em especial, uma ditadura de 26 anos apoiada por Moscou, o ativista previu que uma revolução deste tipo logo aconteceria também na Rússia e terminaria por derrubar o último “czar” Vladimir Putin. Certo ou não, desde sua prisão, milhares de pessoas vêm se reunindo em protesto na rua, o que seria o primeiro passo dessa revolução.

Para mais informações sobre os protestos na Belarus, acesse o texto Um fantasma no poder: juventude e ditadura na Belarus

O rebelde com causa

Para pessoas normais, é difícil entender o porquê de Navalny voltar à Rússia mesmo jurado de morte pelo Kremlin. “O motivo pelo qual ele decidiu retornar é porque ele é um político”, explicou Arkady Ostrovsky, editor russo do The Economist. “E o que políticos fazem é lutar por poder. Não se pode lutar por poder morando fora do país como exilado”.

Navalny, entretanto, tinha motivos para entrar em uma luta contra o neo-czarismo russo. Com o mesmo autocrata no comando no país desde 1999, o “homem mais poderoso do mundo”, segundo a revista Forbes. Vladimir Putin, construiu um império e influência mundial ao redor de sua pessoa.

Alexei Navalny começou sua carreira como “cruzado anticorrupção”, como foi apelidado, em 2008, ao se tornar acionista nas empresas Rosneft, Gazprom, Gazprom Neft, Lukoil e Surgutneftgas, todas empresas públicas de óleo e gás ligadas ao Estado russo. O motivo para isso seria que os investidores poderiam requisitar acesso aos dados administrativos da empresa.

De formação, o ativista graduou-se em direito na Universidade Russa da Amizade dos Povos, mas sua maior contribuição veio a surgir fora do campo jurídico. Em 2010 ele fundou o blog RosPil — um jogo de palavras com raspil, ou desvio de verba, e a abreviação Ros, para Rússia. Lá Navalny cresceu denunciando casos de corrupção, desvios monetários de empresas estatais e divulgava documentos confidenciais delas, mas também destilava duras críticas ao presidente Putin e seu partido. Sobre a Yedinaya Rossiya, o partido de filiação do presidente Rússia Unida, Navalny os nomeou de “partido dos vigaristas e ladrões”, que virou um epíteto popular e slogan da oposição nas eleições de 2011.

Ainda nesse ano, ele fundou a Fundação Anticorrupção (FBK), que balançaria fortemente as bases do governo russo com denúncias fortíssimas. Dentre as investigações, a organização trouxe a público escândalos contra deputados eleitos da Rússia Unida e produções midiáticas em formato de documentário-denúncia. Em He is not Dimon to you (sem tradução em português, mas facilmente encontrado no youtube), a organização trazia a denúncia de um desvio de dinheiro de cerca de 1,2 bilhão de dólares por Dmitri Medvdev, o então Primeiro Ministro da Rússia em 2017.

Em decorrência desse filme, Navalny foi preso por 15 dias por desobediência civil e organizar protestos sem autorização. Esta mesma pena ele já havia sofrido ao questionar fraude nas eleições parlamentares seis anos antes. Não só nesta ocasião, mas também em 2013, Navalny concorreu às eleições municipais à Prefeitura de Moscou saído diretamente da prisão. Na ocasião, o estreante ficou em segundo lugar com 27% dos votos, um terço do eleitorado moscovita presente. As reações à eleição foram mistas e consideradas sem fraudes por órgãos internacionais, embora Navalny tenha requisitado recontagem dos votos. A Nezavisimaya Gazeta, Jornal Independente, afirmou que naquele ano o “fator Navalny” ocupava um espaço ausente da “oposição liberal de direita” e postulou que a eleição transformara o blogueiro em um político.

Em análise certeira do Jornal, o ativista começaria já em 2016 a declarar interesse em sua candidatura às eleições presidenciais dois anos depois. Mas ainda em 2017, Navalny seria impedido de concorrer pelo Comitê Eleitoral Russo pela justificativa de um suposto desvio de dinheiro da empresa estatal Kirovles por Navalny em 2009 — a lei russa impede, em uma espécie de “ficha limpa” que condenados por certos crimes concorram a cargos eleitorais. Contudo, Navalny foi inocentando ainda em 2013 por falta de provas e o caso caiu na opinião pública como uma fraude contra o blogueiro.

A eleição daquele ano foi ganha pelo concorrente a reeleição Vladimir Putin, com 77% dos votos.

O Palácio de Putin

Um dia após a prisão de Alexei Navalny em sua volta para casa, um vídeo era publicado no YouTube — que seria talvez o maior baque contra o presidente Putin até então. A peça com quase duas horas de exibição era um filme documentário com o nome de Palácio de Putin e foi publicado pela equipe de Navalny em seu canal enquanto ele já estava preso.

Imagem de divulgação do Kremlin

O filme, com narração do próprio Alexei Navalny, trazia uma denúncia de uma propriedade czaresca de suposto pertencimento a Putin. A propriedade com mais de 70 km quadrados foi definida como um “Estado dentro do Estado russo” — e seu czar insubstituível, claro, com um nome: Vladimir Putin.

Nessa reportagem investigativa, a propriedade vinculada ao presidente aparece como fruto do “maior suborno da história”. Pago com dinheiro ilícito em uma soma de 1.3 bilhão de dólares, a propriedade na costa do Mar Negro, em Gelendzhik, teria um cassino, um complexo de hóquei no gelo, um vinhedo, porto particular, sua própria segurança e até mesmo um posto de controle de “fronteira”. O Kremlin minimizou o conteúdo do documentário e classificados de “pura tolice” por Dmitry Peskov, porta-voz da presidência.

Tolice ou não, o documentário desencadeou uma fúria popular na Rússia de Putin: desde domingo passado mais de 1500 pessoas já foram presas em protestos pela liberdade de Navalny (incluindo sua própria mulher, Yulia) e contra a autarquia e ditadura não-declarada de Putin. Como Navalny previu antes de ser envenenado, talvez este seja o primeiro passo do fim do atual regime russo. De qualquer forma, independente posicionamento ideológico, Alexei Navalny assinala seu nome na história como um símbolo político e eterno vigilante da liberdade — mesmo em uma Rússia com delírios czarescos e violência soviética.

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Written by Eduardo Reitz

Tentando entender o mundo com a ponta da caneta

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