Um fantasma no poder: juventude e ditadura na Belarus

Sônia* não estava em Minsk naquele 9 de agosto quando as manifestações começaram. Se estivesse, teria provavelmente ficado em casa, não no borbulhar das tensões políticas, próximo aos pontos de votação. Antes mesmo da confirmação do pleito eleitoral, que reelegeria pela quarta vez Aleksandr Lukashenko como presidente do país, centenas de belarussos já se reuniam para reclamar do esperado resultado: uma fraude que perpetuaria a ditadura por mais um mandato. Mas Sônia, que não se deixou identificar sequer pelo nome, tem repulsa a violência, dificilmente se teria juntado aos revoltosos ao perceber o menor sinal de ameaça.
A poucos quilômetros ao sul da capital, Ivan* estava em sua cidade natal, Slutsk, enquanto as manifestações tomavam corpo. Atento à situação em Minsk, muito provavelmente pelas mídias alternativas que só encontram recanto livre das censuras de Estado na internet, o estudante de 17 anos tomou parte nos comícios em Slutsk naquele mesmo dia. “Como manager do país, ele é medíocre”, fala sobre Lukashenko, um fantasma dos tempos soviéticos, assombrando o cargo máximo belarusso desde o colapso da URSS.
Representantes de uma juventude cansada com a inércia e estorvo político no leste europeu, Sônia e Ivan acreditam numa Belarus livre das antigas amarras e influência russa. Apesar da maioria dos protestos serem pacíficos, dificilmente se arriscam a ir às ruas protestar. “Todos que protestam pacificamente têm medo de serem presos ou até espancados”, conta Ivan, já acostumado a acompanhar os acontecimentos pela vista de uma janela: não a da rua, mas a janela de um dos aplicativos do celular, mostrando ao vivo a barbárie contra os manifestantes.
Do outro lado, encontra-se Alexsandr Lukashenko, o último ditador da Europa. Vivendo em seu delírio czarista, o ditador desdenha de tudo e todos. Debocha dos protestos, prende civis e jornalistas, e representa o saudosismo de um triste passado soviético.
*Nomes falsos usados para proteger a identidade dos entrevistados.
Crônica de uma ditadura anunciada
A primeira vez que algum protesto emergia no país havia sido 20 anos atrás, na recém (re)nascida República da Belarus, logo após o desmembramento da União Soviética. Com a inflação no país batendo naquele tempo a marca dos 40% e uma corrupção parasitária, a porta ao oportunismo político estava escancarada.
A boca suja de Lukashenko
Lukashenko também é conhecido internacionalmente por suas declarações polêmicas, o que lhe forjou a imagem de líder carismático e antissistema. Em 2020, ele minimizou os efeitos Covid-19 ao dizer que a cura da doença seria jogar hóquei no gelo e tomar vodca. Certa feita, afirmou que seria “melhor ser ditador que ser gay”.
No ano de 1994, um político, que antes administrava uma fazenda estatal (sovkhoz em russo) nos tempos soviéticos, surpreendeu o favorito às reeleições, Vyacheslav Kebich, ao ganhar as eleições com discurso populista e anticorrupção, ideologicamente nem de esquerda, nem de direita. Lukashenko, na época com 39 anos, era eleito o primeiro presidente da Belarus.
Aos poucos Lukashenko foi construindo sua ditadura: de início fundado em um eleitorado de base forte, mais tarde no uso dos mecanismos políticos. Logo em seu primeiro mandato conseguiu aprovar uma nova Constituição, restringiu as liberdades de imprensa e expressão, cercou-se de sua KGB — polícia nacional que ainda leva o nome do serviço secreto da URSS — e com fraudes eleitorais ao menos desde 2006.
Fora da Belarus, Lukashenko é o imponente último ditador da Europa, dentro do país é chamado de “fazendeiro” e “pai de batatas” em analogia a seu passado administrador de sovkhoz. De mãos dadas a Vladmir Putin, presidente Russo, a Belarus seguiu a contramão da pós-história da Guerra Fria.
A maior parte dos países a partir de 1991 viraram a cabeça ao ocidente, não à antiga aliada Rússia. Vizinha da Belarus, a Ucrânia só conseguiu sua independência total após a Revolução pela Dignidade Ucraniana em 2014, quando derrubou o líder despótico Viktor Yanukovych, até hoje exilado na Rússia, na revolta conhecida como Maidan.
Inverno em chamas
Os eventos conhecidos como (Euro)maidan são as manifestações populares contra as políticas do então presidente Viktor Yanukovych. O termo maidan vem do local onde se concentraram os protestos, a Maidan Nezalejnosti, em português Praça da Independência. Ao longo dos três meses de protestos diários, 102 pessoas morreram e mais de 1.200 ficaram feridos. Para saber mais, assista ao documentário, de produção original da Netflix, Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom.
A jornalista Linda Hourani, 20 anos, natural da Ucrânia e moradora da capital Kyiv, considera aquele momento como “um ponto de virada” e “autoidentificação de que os ucranianos são europeus”. Lukashenko, que sabe do sucesso da Revolução na Ucrânia, desdenha disso e afirma que a Belarus não testemunhará nenhum “maidanzinho”.
Desde o 9 de agosto das eleições, quando o povo foi às ruas com bandeiras alvirrubras (não a oficial do país, legado dos tempos soviéticos), já se criava a expectativa da explosão de um “novo Maidan” na última ditadura europeia. Mas logo o caráter dos protestos revelou-se muito diferente. “Eu diria que os primeiros dias de protestos na Belarus tinham um pouco em comum com o Euromaidan (a forma de protestar, ter confrontos com a polícia). Mas então o povo belarusso decidiu mudar a estratégia e tentar derrubar Lukashenko usando métodos pacíficos e marchando pelas ruas” explica Linda. Ela ainda define os protestos como descontrolados, sem um líder ou plano de ação claro — o que se mostra evidente desde os protestos de ruas às marchas protagonizadas por mulheres na capital.
Apesar da aparente pacifidade dos protestos, a sensação no sistema nervoso da ditadura é da barbárie generalizada. Sônia conta ter medo de andar pela cidade na atual situação política e ser presa sem motivo por estar próxima a um protesto. Ivan não havia arriscado ir a grandes protestos até então, afinal todos que protestam pacificamente têm medo de ser preso, espancado ou somar às listas de desaparecidos.
“Por outro lado, o povo belarusso não tem recursos reais para se opor a Lukashenko” diz Linda, “nem politicamente nem à força. Todos sabemos que os manifestantes são torturados e espancados duramente. A outra razão é que as pessoas que protestam correm o risco de perder o emprego por causa de sua posição. Para mim, os belarussos, que vão aos protestos, são pessoas muito corajosas, mas sua principal fraqueza é que eles não têm líder e nenhum apoio real dos políticos e da comunidade mundial”.

Roubaram minha voz
Svetlana Tichanovskaia, concorrente e conclamada ganhadora da corrida eleitoral deste ano, já não estava no país quando a cena ocorreu, pois havia partido em exílio político à vizinha Lituânia. Outra Svetlana, mas essa Alexijevitsch, jornalista e ganhadora do prêmio Nobel de Literatura em 2015, também se exilou, mas na Alemanha. Enquanto isso, em 14 de agosto, um outro tipo de protesto aparecia nas ruas da capital. Um coro cantava “Oh Deus poderoso” em frente ao Grand Hall Filarmônico de Minsk. Na primeira linha de cantores, um cartaz com os dizeres “minha voz foi roubada” — nas línguas eslavas, as palavras voz e voto têm a mesma forma. Meu voto foi roubado.
Desde o início dos protestos até o momento de escrita da reportagem, a Associação Belarussa de Jornalistas (BAJ) já havia contabilizado 230 repressões contra repórteres no país. As diferentes “vozes” e narrativas são radicalmente reprimidas pelo uníssono brado estatal, algo irônico para o país em que o Nobel de Literatura foi garantido para uma autora de “escrita polifônica”.
Com uma mídia, principalmente televisiva, fantoche e uma educação unilateral, o único lugar seguro para os debates são os círculos de pessoas próximas e família. Ambos Sônia e Ivan não leram os livros didáticos de História, sabem que a informação lá pouco tem de confiável. Contudo, Ivan afirma que “cada vez mais pessoas se interessam pela política interna na Belarus”. Nesse quesito, a internet e as mídias alternativas foram uma grande alavanca no processo de democratização da imprensa e conhecimento.
Nesse cenário, a juventude entra como protagonista na comunicação interna. Linda Hourani conta que essa transmissão têm muita responsabilidade de uma nova classe social chamada classe média urbana, segundo o analista político belarusso Igor Tyshkevich:
Segundo a repórter, “este especialista explicou sobre a principal classe social, que está participando de protestos, chamando-a de classe média urbana (cerca de 1 milhão de pessoas, que vivem principalmente em grandes cidades). Essas pessoas não assistem aos canais de TV estatais, não leem a mídia estatal, é por isso que Lukashenko não tem poder real para influenciá-los. Ele não tem poder real sobre eles e não sabe como se comunicar com eles”
As redes sociais e os canais de comunicação tornaram-se símbolo de resistência imediato à censura do governo. No dia 9 de agosto, centenas de provedores de internet foram derrubados ou apresentaram funcionalidade instável por provável influência estatal. As principais armas desses jovens são o Instagram e o aplicativo de troca de mensagens Telegram, espécie de WhatsApp muito popular nos países do leste europeu. “Para mim, particularmente, o Telegram é a principal fonte de informação” explica Ivan. Ainda fala que o que não é mostrado de jeito nenhum na TV, a grande parte da população consegue encontrar na plataforma.
Linda, com uma visão de profissional da comunicação também chama atenção para a popularização das mídias alternativas. “A Internet desempenha o papel crucial nos protestos belarussos, é claro. Consolidou as pessoas e criou um fenômeno desses protestos. Porque as pessoas não têm um líder, mas têm uma plataforma onde podem se comunicar e convidar em uma marcha/protesto geral. Um grande exemplo disso é uma plataforma chamada Nexta. Foi popular durante os primeiros dias de sérios confrontos com a polícia. Os editores deste canal (é um canal de texto em uma plataforma chamada Telegram — muito popular em países pós-soviéticos) postam mensagens, chamando aos protestos. Eles também o acompanham e ainda têm enorme impacto, porque têm mais de 2 milhões de seguidores.”
Há, entretanto, perigos desse oceano de mídias e informações: das fake news e unilateralidade. Sônia também usa das redes sociais para se manter informada, mas sabe que, como na televisão, ali só vê um lado dos fatos. Como ela diz, “não há notícia que defenda a neutralidade entres dos lados.”
O fim do homem soviético
O ano de 1991 assinalou o fim de uma era na história global. Com o fim oficial da Guerra Fria, o território das Repúblicas Socialistas Soviéticas desmanchou-se com o cair da Cortina de Ferro. Era a extinção do homo sovieticus.
Os países membros da maior experiência socialista do mundo dividiram-se em seus próprios Estados e abraçaram, em maior ou menor grau, o capitalismo — ora selvagem, ora corporativista. As repúblicas bálticas (Lituânia, Letônia e Estônia) tiverem evolução econômica e de qualidade de vida significativas, grande parte atribuído à aproximação ao ocidente, não à Rússia, enquanto a Belarus e Ucrânia (por um tempo) mantiveram-se emaranhados às decisões de Moscou.
Após a Revolução da Dignidade em 2014, quase todos os antigos símbolos socialistas foram um a um derrubados ao longo da Ucrânia. Mais ao norte, a estrela vermelha e a foice e o martelo ainda enfeitam a capital da Belarus. Até mesmo a polícia de Lukashenko retoma o saudosismo soviético com seu nome KGB — o mesmo da polícia secreta da URSS. Lukashenko não sonha com a ressureição soviética, mas inveja alguns pontos: o autoritarismo e o poder.
As bandeiras nos protestos belarussos não são a oficial do país, mas a do período pré-URSS, a vermelha-branca. Assim como aconteceu como a capital ucraniana Kyiv, que recebeu a grafia russificada de Kiev, o nome do país também foi subjugado por muitos anos. Só agora o nome Bielorrússia começa a dar licença a grafia sugerida pelos locais — Belarus.
“Como toda revolução, as mudanças estão acontecendo em nossas mentes” explica Linda em referência aos eventos na Ucrânia a partir de 2014. “Para os ucranianos, a ortografia de Kyiv importa porque desta forma demonstramos que somos um país livre e independente e queremos que outros respeitem nossa história, língua e cultura. A velha grafia “Kiev” está incorreta porque é a forma russa. A mesma história é com ‘Bielorrússia’.”
Lukashenko, em contrapartida, associa a Belarus com sua própria autoridade. Chegando a afirmar que se a Belarus caísse, a Rússia seria a próxima. Em grande estilo Luís XIV, rei francês conhecido pela frase “o Estado sou eu”, o último ditador da Europa confunde a nação belarussa consigo mesmo.
Apesar do moroso apoio da comunidade internacional, os jovens da Belarus ainda acreditam na queda de seu líder autocrata. Em tom otimista, Ivan consegue imaginar um tempo pós-Lukashenko. “Eu espero que depois disso tudo o último ditador da Europa saia envergonhado e seja julgado por todos os crimes”. Para Sônia, a esperança morre por último. Para ela, a Belarus é sua pátria e gostaria de construir seu futuro em sua nação.
Os jovens da Belarus acreditam nas mudanças e simbologia. Embalado nisso, pergunto-lhes hipoteticamente que mensagens gostariam de mandar, se possível, a Belarus, à comunidade internacional e a Lukashenko. Aqui estão suas respostas:
Sônia: “À Belarus, o governo respeita a oposição do mesmo modo que a oposição não reconhece o Poder Estatal. Sem respeito, não chegaremos a nada, porque nenhum lado parece estar pronto para um compromisso. A violência reinante assusta-me.”
Ivan: “Ao mundo, eu quero de verdade que o mundo não nos deixe em necessidade, se tivermos que reviver e reconstruir a Belarus.”
“A Lukashenko, para o camburão!” [A frase original em russo, “в автозак!”, tornou-se uma frase de ordem durante as manifestações em referência aos camburões que sequestram os participantes como se fossem criminosos]
Mais ao fim, ele dirige mais uma mensagem. Mas esta, ao autor: “Obrigado por não ignorar a situação na Belarus!”
Observação: neste texto foram usadas as grafias Belarus e Kyiv, em detrimento de Bielorrússia e Kiev, em respeito à autonomia cultural de ambas as nações.