Uma bela história — último relato de meu intercâmbio

Eduardo Reitz
5 min readJul 4, 2020

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Nem o maior dos pessimistas arriscaria prevê-la, mas apesar disso ela veio aos poucos, enquanto teimávamos viver despretensiosamente: a pandemia do Coronavírus, esse palavrão, também chegara a Alemanha. Ninguém sabe como, nem sequer notou-se acontecer. A semana no dia 9 de março acordou como todas as outras até aquele dia, o mundo ainda girava. De repente, na quinta-feira daquela semana, uma tensão se apossou de todos, como se estivesse lá adormecido e de súbito desperta-se irada. Os rumores de todo tipo, que já não mais se separavam de mentira e verdade, vinham a nós, intercambistas, pela televisão, internet e família. Vão cancelar as aulas! Não vão! E foram canceladas. (A propósito continuam em muitos estados até hoje) Nas vilas também se comentava: isso não chega aqui, é longe de tudo! E chegou. Por fim veio a derradeira, vão nos mandar pra casa… e mandaram.

Foi-se decidido pelo YFU Global encerrar os programas de intercâmbio e repatriar todos os estudantes a seus devidos países. Como num devaneio, exatos dez dias após meu último dia escolar na Alemanha voltei a pisar nas quentes terras verde-amarelas. A última vez fora sete meses atrás.

Elbstrand com outros intercambistas

Não posso negar que de princípio foi frustrante. Seria mentira. Lutar contra, entretanto, era inútil e entendemos a contragosto a excepcionalidade do que vinha a ocorrer no mundo. Não serei insensato e pontuar somente o amargor daqueles dias. As últimas semanas desde o último relato que escrevi ao Pasch e o momento do meu embarque, tomei-os como a melhor das despedidas, numa expressão que ouvi muito na época do furacão Sabine, “a calmaria antes da tempestade”. Vou mais além: se me perguntarem se o meu ano de intercâmbio valeu a pena, sou obrigado, com um certo orgulho, a parafrasear Pessoa: esses sete meses têm somente duas datas importantes, minha chegada e partida, entre as duas todos os dias são meus.

Uma das minhas preocupações iniciais, talvez a mais perene entre todas, era se aprenderia a tal língua de Goethe (essa quimera a qualquer noviço). Apesar da preocupação, aprendi muito com o tempo e gosto de contar que meu certificado de aprendizado mais fiel foi meu passe do ônibus. Explico: todo o mês eu tinha de renová-lo em Lüneburg, me lembro de todas as minhas visitas em ordem cronológica. Na primeira estava acompanhado de minha irmã anfitriã, como uma intérprete — eu completamente mudo! No segundo mês aventurei-me sozinho, com o dinheiro contado na mão e esperando falar o mínimo possível. No quarto já conversava amigavelmente com as funcionárias, brincava com elas, sem temor de qualquer espécie e no sexto me sentia capaz de ajudar outros estrangeiros que buscavam ter seu próprio passe — não vou negar, vi de mim um pouco neles. Não apenas com o passe, mas em todo meu viver foi se fazendo uma leveza com a língua, uma naturalidade altiva. Uma sombra, porém, quase patológica, me perseguiu a estadia inteira: aquele meu sotaque estrangeiro, que por algum motivo, despertava estranha pergunta se eu era francês (para os mais diretos, de onde da França eu vinha)… No início encarei com estranheza, mas decorei o discurso explicativo de que eu vinha do Brasil — eu lhe juro! -, embora não parecesse.

As amizades, de qualquer fatia do mapa, são uma parte inseparável de todos esses dias. Dos alemães, europeus, outros latino-americanos, cada qual com particularidades, aberturas, estavam em todos os momentos, viveram comigo tudo isso. São parte da minha vida. Olhando para trás, todos os momentos e pessoas que por motivo ou outro pularam na minha história tiveram algo a ensinar, tocaram a existência. Não foram de todos que conseguimos nos despedir, muitos se foram antes, outros depois. Há ainda os que ficaram, por ser ali a sua terra. Mas todos valeram o tempo gasto a toa, sabendo que chegaria ao fim e mesmo assim o ignorando, como se durasse pra sempre. Eis um conceito: não foram (está abolido o uso do pretérito), são amizades vitalícias.

As histórias têm uma lógica estranha, na qual os começos só se completam de sentido no fim. Foi logo em meu segundo dia com minha família anfitriã, dia 24 de agosto (anotei todas as datas em meu diário de viagem), que uma página, que só encontraria seu par muitos capítulos depois, foi folheada. De uma velha estante meu pai anfitrião puxou um livro grosso, correu até uma página e o passou a mim. “Reconhece” perguntou apontando pra página amarela. Era um mapa do Brasil, mas diferente. Envelhecido, com Desterro ao invés de Florianópolis. “Meyers Konversations Lexikon”, me explicaram, uma enciclopédia de 1894, terceiro fascículo, de “Biot” a “Chemikalien”. Lá no miolo espremia-se o “Brasilien”, já muito mudado, mas ainda brasileiro. Minha família anfitriã cultivava um interesse por muitos assuntos, não demorou para que eu me encontrasse sentado à sala com eles, conversando sobre tudo, como se fosse um membro de sangue. O que aprendi com eles e as experiências que tivemos (e que ainda teríamos) são inenarráveis. Afirmei desde o princípio que tive sorte por cair nessa família. No meu penúltimo dia na casa dos Werner (sobrenome de minha família anfitriã), disseram-me para esperá-los na sala. Trouxeram presentes que seriam dados no meu aniversário: uma camisa com a bandeira da baixa-saxônia estampada em um MOIN garrafal (cumprimento típico do norte alemão), a qual visto como um manto, e aquele tijolo negro, a enciclopédia que me encantou nos primeiros dias. Senti como se um ciclo se fechasse no universo. No outro dia fomos à Estação de Lüneburg.

Mapa do Brasil do séc. XIX

Em meu primeiro relato e em meu diário citei aqueles cataventos de energia eólica espetados pelo horizonte. Os via por última vez enquanto ia de trem a Frankfurt. Estou no aeroporto vazio, as poucas pessoas ao redor trajando máscaras e portando desinfetantes. Minha mãe anfitriã sugeriu que eu escrevesse um livro sobre aquele tempo. De fato escrevi, reli meu diário durante o voo: o livro dos meus dias. Aterrisamos. Estou longe do fim: minha conexão para Florianópolis foi cancelada. Decidi tomar um carro até Curitiba, o meio do caminho, e lá encontrar minha família, só para então seguir viagem. Finalmente, depois de oito horas rodando pela BR (penso como teria sido prático ICE, trem alemão), contemplo a silhueta de minha cidade. No caminho aquele longo horizonte limpo, sem uma torre sequer, como era estranho isso. Com essa visão pus um ponto final em meu diário, ali estava daquelas aventuras que se rememora até o fim da vida, e, suspirando, conclui: foi uma bela história!

Eu com meus pais anfitriões prestes a tomar o trem

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Eduardo Reitz
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Written by Eduardo Reitz

Tentando entender o mundo com a ponta da caneta

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