O reacionário que não era: a liberdade na obra de Nelson Rodrigues
Brevíssimo texto para apresentar um dos maiores defensores da liberdade no Brasil ao movimento liberal

Diferentemente dos comunistas e outros grupos de esquerda, os liberais mais recentes sempre estiveram distantes da literatura. Fora alguns parcos (mas grandiosos) nomes da ficção, a chamada “literatura liberal” sempre esteve associada a livros e tratados de economia e direito — enquanto a esquerda chegou a fundar seus próprios gêneros artísticos.
Por que isso? Permito-me uma crítica: na verdade, os liberais são quase todos chatos, presos em teorias, cifras e jargões econômicos. Se a esquerda perdeu em tudo — economia, direito, política — como diria Pondé, foi na cultura que ela teve sua vitória esmagadora e perpétua.
Apesar disso, a literatura ainda conseguiu produzir excelentes escritores e contadores de história que abraçariam as ideias de liberdade, mas não se prenderiam somente a falar sobre elas. No mundo, Vargas Llosa, Fernando Pessoa e Borges são alguns desses liberais que resolveram não falar só em liberalismo (e talvez, por isso, deram à liberdade um significado além), ou tampouco fazer simples panfletagem. Já no Brasil, o escritor que defenderia mais ativamente a liberdade estava, curiosamente, muito distante do liberalismo (e ainda bem!).
Declarando-se abertamente reacionário (coisa que não o era) e sendo odiado por “imbecis de ambos os sexos”, foi o anjo pornográfico, Nelson Rodrigues, quem mais defendeu a liberdade sem nunca se declarar liberal.
O Brasil de hoje, tomado pelo cinismo igualmente desmoderado, ainda tem alguns dos tons do de Nelson. Não seria de se espantar se nosso “reacionário” fosse chamado de comunista ou cancelado por canalhas de todas as ideologias.
Se hoje, muitos acham que o pão vale muito mais que a liberdade e tremem toda vez que o óbvio é dito, isso é apenas o sintoma trágico de nosso tempo: nos faz falta um Nelson Rodrigues.
Reacionário na retórica
Tomei um livro do Nelson de minha estante, espremido e com cheiro de poeira. Para mim, os livros do Nelson, mesmo que saídos da livraria, cheiram à poeira. Reflexo de suas ideias: muito atuais, mas amareladas e com odor de relíquias.

Sua ideologia (como definimos hoje) não é da mais claras para quem não o conhece: trouxe para si poucos rótulos, além de reacionário — definido por ele mesmo como uma “reação a tudo que não presta”, e não no sentido fascista da palavra — e como convicto anticomunista.
Eu sou um anticomunista que se declara anticomunista. Geralmente, o anticomunista diz que não é. Mas eu sou e confesso.
Para o autor, Marx era “uma besta”, e as experiências comunistas era o que mais envenenava a intelectualidade brasileira. Suas críticas aos regimes ditatoriais, entretanto, eram muito mais profundas que um simples materialismo econômico:
E por quê? Porque a experiência comunista inventou a antipessoa, o anti-homem. Conhecíamos o canalha, o mentiroso. Mas, todos os pulhas de todos os tempos e de todos os idiomas, ainda assim, homens. O comunismo, porém, inventou alguém que não é homem. Para o comunista, o que nós chamamos de dignidade é um preconceito burguês. Para o comunista, o pequeno burguês é um idiota absoluto justamente porque tem escrúpulos.
(Aqui vemos reflexos de Dostoievski, autor de predileção de Nelson, e seu profético “Os Demônios”, cujas previsões iriam se concretizar na ascensão bolchevique.)
Nelson se atreveu a ir contra o senso-comum de seu tempo e se opor aos intelectuais brasileiros; à juventude que “proibia proibir”, mas dava vivas a Stálin; e os idiotas de direita e esquerda.
Ah, os nossos libertários! Bem os conheço, bem os conheço. Querem a própria liberdade! A dos outros, não. Que se dane a liberdade alheia. Berram contra todos os regimes de força, mas cada qual tem no bolso a sua ditadura.
Seu grande legado para o pensamento político brasileiro é sua leitura psicológica da sociedade e seus arquétipos mais memoráveis do espírito brasileiro. Ninguém estava a salvo da caneta de Nelson.
Seria injusto tachar de reacionário um homem que desmitificou a “família tradicional brasileira” em toda sua imoralidade e pornografia; foi classificado de tarado e censurado pela ditadura (após erroneamente apoiá-la) e trazia os temas mais provocadores e chocantes para as linhas dos jornais. Seria injusto, a não ser que ele mesmo o fizesse.
Como diria Nelson, sua reação era contra tudo aquilo que não prestava.
A liberdade vale mais que o pão
Não é de se acreditar que Nelson Rodrigues se definiria em algum momento como liberal — e por diversos motivos. Nas palavras de outro grande frasista brasileiro, Roberto Campos, um dos motivos é que o liberalismo nunca deu o “ar de sua graça” no Brasil. Fora os anos mais recentes, o liberalismo foi por esses lados quase sempre uma ideologia natimorta. Mesmo hoje, é difícil de se esperar que Nelson se declararia como um liberal.
Uma grande virtude de Nelson foi saber desvencilhar-se de declaradas ideologias. Segundo o autor, a paixão política era a única forma de paixão cretinizante, capaz de “imbecilizar o homem”. Por não abraçar partidos e ideologias berrantes, Nelson pode-se manter um pensador livre e declarar suas ideologias nas entrelinhas de suas polêmicas frases.

A liberdade (desvinculada de qualquer “ismo”), era, nessa visão, sua musa por inteiro. A liberdade, nesse sentido, deveria estar em quase todas esquinas do homem: no amor, no ir e vir, na opinião. Para ele, nem uma censura vinda de Jesus Cristo era aceitável.
Foi no comunismo que Nelson viu os maiores perigos à liberdade no Brasil. Comparando com os dias de hoje, os comunistas de outrora pouco mudaram e continuam com a mesma retórica antiquada.
Dirá alguém que os nossos escritores de esquerda não fazem literatura, mas assumem uma atitude corajosa contra os Estados Unidos. Não há tal coragem. É facílimo atacar os Estados Unidos no Brasil e dentro dos próprios Estados Unidos. Até os norte-americanos se auto-atacam, com a maior efusão. Sartre mete o pau nos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, cospe na memória de Pasternak. O nosso “intelectual de esquerda” não suspira contra a Cortina de Ferro. Lá a inteligência é diariamente estuprada. Ninguém diz nada.
Mas é no plano filosófico, no não dito, que o pensamento “liberal” de Nelson se escancara. O individualismo era uma marca do autor, para quem cada pessoa era uma reflexão única e desvencilhada das massas. As massas eram, ao contrário, burras.
Toda unanimidade é burra.
Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar.
Para ele, “qualquer indivíduo vale mais que a via láctea inteira”, elevando o acima das multidões e dos grupos. Em uma frase simples, Nelson resumia a grandiosidade que se levara centenas de anos para se incorporar aos direitos do homem — o individualismo. Muitos filósofos poderiam viver para uma frase de Nelson.
Por fim, a liberdade para ele era de um valor supremo, inalienável e perpétua. A liberdade não poderia ser comprada e nem trocada para Nelson: era seu fim por inteiro. Quando via os jovens ‘que davam vivas a Stalin” clamar pela liberdade, subiam-lhe ânsias — e com razão.
Se o homem, de uma maneira geral, tem vocação para a escravidão, o jovem tem uma vocação ainda maior. O jovem, justamente por ser mais agressivo e ter uma potencialidade mais generosa, é muito suscetível ao totalitarismo. A vocação do jovem para o totalitarismo, para a intolerância é enorme. Eu recomendo aos jovens: envelheçam depressa, deixem de ser jovens o mais depressa possível, isto é um azar, uma infelicidade.
Embora hoje estejamos com valores inversos no Brasil de hoje, sempre teremos suas obras para nos lembrar que, no fim, “a liberdade é mais importante que o pão”, e ela sempre vencerá contra todos os tiranos, contanto a vigiemos.
Comentários finais
Como último aviso deste brevíssimo texto, não recomendo a leitura de Nelson Rodrigues apenas por uma afinidade ideológica. Isso seria uma forma de cretinizar sua obra. Se o juntei às ideias de liberdade, foi por falta de quem o fizesse antes, não panfletagem.
A leitura de Nelson deve ir muito além de suas crônicas mais politizadas. Lê-lo é ter a experiência de tocar a alma humana. Muitas vezes, o autor trouxe à tona as reflexões mais canalhas do homem, diminuindo e engradecendo-o na mesma medida.
Por fim, ler Nelson é uma introspecção. Em uma confissão, ele se definiu como um menino que via o amor pelo buraco da fechadura. Toda vez que abro um de céus livros (cheirando a pó, mesmo que recém saídos de uma livraria), sinto-me convidado a dar uma discreta espiadela com ele pela fechadura da vida.