Despertando para a vida

Eduardo Reitz
3 min readDec 21, 2020

“Eu queria ser como Knulp”, disse ele, apontando com o dedo indicador para o livro fino de Hermann Hesse no armário do lado oposto, que eu olhei incansavelmente por anos. Naquela época, eu não sabia ler, o que fez com que meu primeiro objetivo na vida fosse aprender esse modo de expressão. As letras pareciam pequenos insetos através das folhas, cuja mensagem oculta ele decodificava facilmente para mim.

Nossa vila, ele nunca havia deixado. No entanto, ele falava sobre as florestas tropicais e seus habitantes extraordinários, os mares e tesouros distantes e histórias heroicas como se ele fosse parte delas. O velho as contava tão vivamente que até se atrevia a acreditar que ele havia vivido tudo aquilo. Entretanto, admitiu ele, seu maior sonho era poder conhecer o mundo pessoalmente. “Por que você não fez isso?” Eu perguntei, olhando para ele. Depois de um tempo em silêncio – no qual só podíamos ouvir as cigarras cantando – acrescentei impaciente: “Você é um matão, um matão de sonhos”.

O homem, sempre calmo, me olhou sem pressa com sua típica meia-risada no rosto e disse que não era um matão de sonhos – ele enfatizou ironicamente as últimas palavras. Parecia que mergulharíamos em um daqueles silêncios desconfortáveis, quando uma reação inesperada dele de repente quebrou o clima.

“Eu fui ao mesmo tempo tudo e nada”, começou ele. “Meu sonho era olhar o grande mundo com meus próprios olhos, viver com sociedades primitivas e sentir os deliciosos e mundanos sentimentos dos homens”, então ele parou por um tempo, olhou pelas prateleiras cheias de livros. “Embora toda a minha vida tenha passado em nossa vila, viajei por toda parte sem nunca ter precisado de uma passagem. Você pode dizer que perdi minha existência em sono profundo. Sonhei muito com a vida, de fato, mas estava de olhos abertos. No sonho acordado, eu era Dom Quixote e Madame Bovary, sofria junto das paixões de Werther, e também chorei na crucificação de Jesus. Na estrada com Humboldt, descobri o coração da América do Sul e, com Vasco da Gama, cheguei às Índias.

“Por muitas noites, me tive por médico, pastor e engenheiro. Às vezes cheguei até a ser eu mesmo… em segredo, escrevi filosofias que nunca deixaram o meu quarto e, à rua, recitava a beleza da existência. Eu fui tudo e também fui nada, é por isso que todos os sonhos do mundo me pertencem”

Eu olhei para ele sem palavras quando ele finalmente se sentou na poltrona ao lado da janela depois da longa fala. Os livros que se acumulavam ao redor dele me convenceram de sua vida aventureira e silenciosamente concordaram com todos os sonhos e histórias. Naquele momento, ficou claro para mim que sonhar não tem nada a ver com sua realização. Quem se atreve a ser, apenas o que se pode ser é o verdadeiro matão, o “matão da vida”, ele teria dito, não estivesse novamente imerso nos seus pensamentos.

Olhávamos pela janela: o céu estava estrelado, o mundo estava me convidando. Tirei Knulp do armário e senti-o com cuidado. Quando o abri, eu queria sentir todos os sentimentos do mundo, como ele fez. Tomei um suspiro – despertei à vida.

Texto publicado originalmente em alemão no Ebook “Ich habe einen Traum”. Original disponível no link https://aufbau-verlag.de/ich-habe-einen-traum-auswaertiges-amt, na página 729.

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