Como vai você? Relato de um voluntário do Centro de Valorização da Vida
Toda as quintas-feiras, às 19h, Geyson Serafin deixa seu trabalho, no terceiro piso do Beiramar Shopping no centro de Florianópolis, antes do fim do expediente. Durante o dia, o homem de 42 anos trabalha em sua loja de chá, mas, com o entardecer, sabe que logo terá seu compromisso semanal.
No caminho, prepara-se emocionalmente. Mentaliza que aquele será um dia bom. Ao chegar no antigo prédio na Avenida Hercílio Luz, está pronto para as próximas quatro horas. Entra na sala número 408. Pluga o telefone no encaixe e espera o sinal. Do outro lado da linha, alguém disca as teclas 188.
“Centro de Valorização da Vida, como posso ajudar?”, ele atende.
E começa a conversar com o usuário do outro lado. Ao fim da ligação, descansa o telefone no gancho. O trabalho do CVV sustenta-se em dois princípios, sigilo e anonimato. Terminada a ligação, não há mais contato entre eles. O conteúdo da conversa? Ele não pode revelar a ninguém.
Assim ele passa as horas de suas quintas-feiras à noite. Ao término de seu turno de quatro horas, despluga o telefone e volta para casa. Em seguida, alguém assumirá o aparelho pelo próximo turno, continuando o ciclo do voluntariado do CVV.
Como vai você?
Formado em jornalismo pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), hoje estudante de parapsicologia e dono de uma loja de chás no Centro, Geyson sabia que um dia iria querer praticar algum voluntariado. “Eu queria devolver pra sociedade um pouco do serviço que eu recebi”, ele explica. “E o CVV se encaixou muito na minha disponibilidade”.
Voluntário desde 2018, suas horas de quinta-feira à noite são reservadas ao Centro de Valorização da Vida. Apesar de parecer para os leigos uma experiência complicada, Geyson fala de como aprende e se agrada com o trabalho. “O ser humano tem a necessidade de botar o sentimento pra fora, se acontecer uma coisa muito legal ou ruim, vais querer falar isso pra alguém”,explica.
Naturalmente, há um preparo para se tornar voluntário na associação. Os interessados devem ter no mínimo 18 anos e passar por um curso preparatória (ocorrendo remotamente nos tempos de pandemia). Como Geyson define, é um curso de “escutatória”, para se aprender a escutar.
Para ele, um dos maiores problemas de hoje seria a (falta) de comunicação. Mais especificamente o saber ouvir. “Uma conversa fica muitas vezes num ‘ping-pong’ e ninguém escuta o outro”. Os voluntários não precisam ter nenhum preparo profissional, apenas o interesse e a capacidade de conseguir captar o que o outro tem a dizer.
Segundo o porta-voz do CVV em Florianópolis, José Vilela, o curso ensina uma nova forma de escutar. Uma dificuldade muito grande é entender a linguagem do usuário da linha. “Você fala bola e eu imagino uma bola de basquete, futebol, vôlei… mas na verdade você está falando de uma bola de ping-pong”, exemplifica.
A associação possui atualmente 50 voluntários em Florianópolis, sendo que dois pelo menos trabalham simultaneamente na linha de apoio. Há também o atendimento presencial (suspenso devido à pandemia de Covid-19) e por chat on-line. As ligações podem vir de qualquer lugar do país e não há necessidade de identificação alguma, o que mantém o anonimato.
Todo mundo precisa de aconselhamento
Um erro muito comum acerca do número 188 é que, quem a utiliza, está com a intenção de tirar a própria vida. Como explica o porta-voz do CVV, José Vilela, a linha de apoio vai muito além disso.
Segundo ele, grande parte dos telefonemas não se trata em nada relacionado a temas como suicídio e depressão, mas à solidão, problemas de trabalho, pressão ou só um desabafo. Ele explica que isso acontece muito pelo receio do usuário de incomodar algum ente próximo ou de ter algo usado contra si depois.
Durante a pandemia do Coronavírus, embora não tenha havido um grande aumento no número de ligações, a mudança do teor das conversas foi evidente, segundo Vilela. As preocupações se voltaram muito às angústias causadas pela crise global — como perda de trabalho, isolamento social e preocupação de perder o emprego.
O estereótipo que apenas indivíduos que querem “romper o vínculo com a vida”, como diz o porta-voz, utilizam do 188 é um dos principais empecilhos de contato com a linha. Geyson conta que, certa vez, quando estava morando na Inglaterra, um desconhecido o teria abordado e dito, em inglês, “você precisa de aconselhamento”. Confuso, perguntou o porquê, ao que o desconhecido respondeu: “todo mundo precisa de aconselhamento”.
Como ligar para o CVV
As ligações para o CVV são gratuitas e realizáveis pelo número 188. O contato é anônimo e pode ser feito com um voluntário em qualquer lugar do Brasil. Vale lembrar que o atendimento do CVV não substitui uma terapia para problemas mais sérios, mas é indicado para emergências e desabafos.
Outra vez, andando de carro por uma rua de Florianópolis, teria visto uma vizinha sua chorando na calçada. Alguns momentos depois, pegou o celular e lhe mandou uma mensagem sugerindo que ela ligasse para o CVV naquele dia. Se ela fez isso, não sabe. Eis outra coisa que aprendeu em seus dois anos de voluntariado: “a gente não precisa saber o final de toda história”.
Matéria escrita para o Fato&Versão em 11/11/2020