Arsène Lupin e como as séries têm o dever de salvar a literatura
Ele consegue ser qualquer um e pode estar em qualquer lugar sem ser visto, até mesmo amarelado em uma velha estante

A edição é de 1981, as páginas estão amareladas pelo tempo e o português está escrito “errado”, com acentos nas sílabas trocadas. Desde 2015 aquela edição de Arsène Lupin, As oito pancadas no relógio estava ali disfarçada dentre as mais de nove mil obras do sebo, na seção de Literatura Estrangeira, sem que ninguém a notasse. O grande ladrão de casacas, Arsène Lupin, de criação de Maurice Leblanc, pode com certeza entrar em um lugar sem ser visto, mas sua saída do Sebo CIA do Saber, no centro de Florianópolis, era impossível passar despercebida.
“Em menos de dois dias, as quatro edições que tínhamos no Sebo foram vendidas”, conta Matheus Almeida, funcionário do CIA do Saber. “A procura aumentou muito com a série”, ele complementa citando a produção cinematográfica da Netflix, Lupin, que apenas três dias após a estreia já encabeçava o TOP 10 de mais vistos no mundo.
A produção ressuscitou as aventuras do ladrão de casacas. Diferentemente de muitas outras adaptações, recebeu uma avaliação extremamente positiva, tanto do público quanto da crítica e alavancou as vendas dos livros de Leblanc no Brasil. “Quando sai um filme, série, ou até quando um autor morre”, explica Matheus, “a procura aumenta consideravelmente. Como foi o caso de John le Carré [falecido em 2020, autor de O espião que saiu do frio], que morreu e os livros foram vendidos na mesa semana”. Em um tempo de produções em multiplataforma, seria impossível acreditar que as obras de J.K. Rowling, Dan Brown e até o universo Marvel teriam o mesmo sucesso se não fossem rapidamente dramatizadas nas telonas.
A série francesa foi lançada na mesma semana que a produção britânica Bridgerton — também inspirada em uma série de livros da autora Julia Quinn — que se tornou um bestseller no Brasil nas últimas semanas. Recentemente foi anunciado que a série de livros de Leblanc voltou a ser impressa no Brasil e está ao lado dos livros de Quinn entre os mais vendidos no país.
O que explica o sucesso, de público e editorial, do maior ladrão de casacas da literatura policial?
A receita de Lupin
Muitas produções cinematográficas baseadas em livros sempre fomentaram, acima de tudo, críticas da maioria dos leitores. “O livro é melhor que o filme” e “a história é muito diferente da original” sempre são frases que acompanham quando as páginas de um livro viram uma longa-metragem ou produção seriada. Reza a lenda que o grande diretor Hitchcock teria se negado a dirigir uma adaptação de Crime e Castigo, de Dostoiévski. O diretor, em entrevista, disse que jamais iria “deformar” um clássico desse nível.
Já com Lupin, essas duas frases passarão bem longe das críticas por um motivo simples: Lupin não transforma (ou deforma) nenhuma história em particular de Leblanc em enredo, mas une todas elas na sombra do protagonista Assane.
Na versão original de Maurice Leblanc, Arsène Lupin aparece como um sempre bem vestido gentleman de mão-leve na França da belle époque, início do século XX. O famoso ladrão de casacas, apesar de um bon vivant, personificava a figura contraditória de um anarquista francês de caráter anti-heroico: tudo que fazia era roubar dos ladrões (piores que ele, claro!) para dar aos injustiçados – muitas vezes ele mesmo. Sua ética não é clara, o que o torna um personagem mais interessante ainda.
Além disso, Leblanc conseguiu duas proezas únicas na criação de seu personagem. A primeira é a comparação constante com o detetive Sherlock Holmes (que chega a fazer aparições nos caminhos de Lupin), um elogio máximo do gênero policial. A segunda, virar um neologismo — em francês, lupinologie resigna o engenho apurado e malandro de alguém “lupinesco”.
A série criada por George Kay e François Uzan consegue muito bem traduzir os ideais representados por Leblanc ao mundo moderno. Ao colocar um imigrante senegalês como protagonista sem mudar uma linha sequer das obras de Leblanc, os produtores conseguiram espantar as críticas mais severas e criar um mundo completamente novo sem deformar as obras originais. Foram muitas as produções criticadas por modificar personagens e caráteres para adaptá-los aos padrões pós-modernos. Assane Diop não é Arsène Lupin, embora seja lupinesco o bastante.
Ainda diferentemente de outras produções, Lupin não dá ao telespectador a obra mastigada, pronta quando os créditos percorrem a tela. No fim de cada episódio, as aventuras de Assane Diop deixam um gosto na boca de saber mais sobre os métodos do “verdadeiro” Arsène Lupin, o que leva obrigatoriamente a folhear os livros originais.
A frase “o livro é sempre melhor que o filme” também não pode ser empregada nesse caso. Seria ingênuo compará-las — a escrita de Maurice Leblanc ou o enredo cinematográfico — por um motivo muito simples: os dois tentam, a suas maneiras e linguagens, contar histórias diferentes de um bom-ladrão, que vão se unir apenas sob a figura de Arsène. Pode-se gostar mais de um ou de outro, mas não se pode negar que ambos dramatizam com maestria suas propostas.
Uma das soluções para diversas produções, que não passam de adaptações mais ou menos autênticas de suas fontes literárias, seria se inspirar na literatura para criação de um universo próprio, não tentar traduzi-la para um mundo que não lhe pertence. E quando sim, com muita cautela.
Desse modo, muitos telespectadores não acostumados a literatura são puxados à curiosidade de conhecer o universo de Arsène Lupin. Do mesmo modo, muitos leitores são atraídos aos roubos calculados e cinematográficos de Assane Diop. No final, quem mais ganha com isso é a literatura, às vezes deixada em segundo plano nesses tempos de hegemonia da sétima arte.
Na sombra de Arsène
Lupin, Dans l’ombre d’Arsène — ou Lupin na sombra de Arsène, em português — foi ao ar no dia 8 de janeiro com cinco episódios de 45 minutos cada. A série francófona traz como protagonista Assane Diop (na pele do renomado ator de Intocáveis, Omar Sy), um imigrante senegalês tentando vingar a honra do pai, que lhe incentivou o mundo das letras e apresentou às obras de Maurice Leblanc, acusado de um crime que supostamente não cometera.
A peça já foi vista mais de 70 milhões de vezes e promete figurar entre as maiores produções não-anglófonas do mundo, ao lado de clássicos da cinematografia moderna. Fora o grande sucesso do enredo bem trabalhado, a série fez um grande trabalho à literatura ressuscitando um clássico da literatura policial, há muito esquecido nas prateleiras e livrarias do país.
A Editora Zahar, que possui os direitos de publicação no Brasil, levou a público que as vendas em suas obras de Leblanc superaram apenas no mês de janeiro o ano inteiro de 2020. Por causa da grande procura pelo livro, a editora reimprimirá a edição de O Ladrão de Casacas ainda para o primeiro semestre.
Não só no Brasil, mas em todo mundo os livros de Leblanc estão encabeçando as listas de mais vendidos. O mesmo ocorre com a série Bridgerton. Segundo o jornal Espalha Factos, ao menos em Portugal, Espanha, Reino Unido e França, o topo dos livros mais vendidos recebia a presença ilustre de Arsène Lupin.
No Google houve também um aumento substancial nas pesquisas pelos títulos dos livros que, segundo a Decode (empresa responsável por medição de métricas na Google), cresceu 4.336% de 19 de dezembro ao mesmo dia em janeiro. No Twitter, a série também figurou em oitavo lugar nos trending topics do Brasil em nove de janeiro.