A História pertence a quem? — Homo Literatus
Quem detém o direito de contar a História? Essa função é exclusiva de historiadores ou outros estudiosos também podem dar sua versão?

A História dos “perdedores”
Que a história é escrita por quem “venceu”, já é quase um clichê repetido há tempos. Mas também não é errado dizer que, no passado, apenas os “vencedores” tinham o costume de ler, muitas vezes para comprovar as narrativas que eles próprios queriam ouvir.
Os paradigmas mudaram com o tempo, e aos poucos os “perdedores” (como o “operário que lê”, de Brecht) começaram a fazer perguntas que puseram fatos incontestáveis da história do Brasil e do mundo numa corda bamba dos livros.
A retirada de monumentos, os livros trazendo visões diferentes sobre o passado e petições para mudanças de nomes contestáveis mundo adentro nos revelam uma coisa: aqueles “que perderam” começaram a ler e a questionar fatos do passado e do presente.
Desse fenômeno, muitas pessoas sem a formação regular em História começam a trazer narrativas que nos dão uma outra perspectiva para entender a formação do país, de Cabral aos dias de hoje. Provavelmente já se ouviu comentar sobre os escritores Laurentino Gomes e Eduardo Bueno, dois exemplos de jornalistas que escrevem sobre a História, colocando-se entre os best-sellers das livrarias.
Mas, do meio disso tudo, vem à tona uma pergunta fulminante: a quem pertence a História? Apenas historiadores (de formação acadêmica) podem escrever sobre o passado, ou também os jornalistas, entusiastas e “meros mortais”?
Resgatado a História das salas de aula
Embora nunca tenha podido me dedicar totalmente, sempre tive um fascínio pela História. Entre um livro e outro de literatura, frequentemente me pego viajando no tempo por entre as páginas de alguma obra de não-ficção.
Embora não seja assim para a maior parte da população (que ainda pouco lê, infelizmente), a História continua sendo uma “coisa de escola” — uma fileira interminável de datas e nomes que pouco dizem. Para muitos, a História não passa de uma matéria de vestibular ou o arroubo de intelectuais. Nos últimos anos, muitos autores de fora do campo de ensino vieram resgatar os livros didáticos, dando novas cores, sabores e tons à História.
Quem foi que não se divertiu com a narrativa irônica de , em que o jornalista Laurentino Gomes narrou de forma caricata, mas precisa, o nascimento de um país por um príncipe medroso, uma rainha louca e uma corte corrupta nos trópicos? A obra conseguiu o feito inédito de inserir a história do Brasil entre os best-sellers de um país que pouco lê e quase nada conhece sobre seu passado.
Os mais jovens devem conhecer a Coleção Brasilis do também jornalista Eduardo Bueno. Narrando a história do Brasil em livros infantis, o escritor gaúcho nos leva pela mão, em prosa dinâmica e jornalística, pelas praias e selvas do descobrimento do país. Nos dois casos, os escritores fazem uma análise mais psicológica e menos materialista dos principais personagens da nação, dando-lhes vida e sentimentos que nunca imaginaríamos dentro das salas de aula.
As críticas aos “não-acadêmicos”
Ainda assim, muitos historiadores destilam críticas à História escrita por “não-acadêmicos” da área. Eles os acusam de revisionismo, simplismo narrativo, propagação de mitos, inverdades e falhas no rigor da checagem histórica. Há aqueles que rebatam, alguns até mesmo historiadores, e digam que muitas das críticas não passam do ciúme por escreverem livros bons, em linguagem fácil e que são muito lidos.
Então quem pode escrever a História? A quem ela pertence?
Só historiadores podem escrever a História? É verdade que muitos dos livros mais vendidos de História não possuem o rigor acadêmico dos livros de graduação, mas isso não é, necessariamente, um problema!
A mais recente obra de Laurentino Gomes, a trilogia Escravidão, traz à reflexão uma temática de crucial importância para a formação do país, mas com uma prosa suave, rítmica e, às vezes, narrativa. Não fosse pelo estilo “popular” do jornalista, menos pessoas poderiam ter acesso a esse conhecimento. Há, ainda, quem diga que ler esse estilo de livros seria como ler Harry Potter, e não a “alta literatura” historiográfica.

“A formação de leitores começa por Harry Potter”[1], disse certa vez o próprio Laurentino. Os livros de história escritos por jornalistas podem ser uma excelente porta de entrada para temas mais complexos da historiografia. Ou, às vezes, apenas uma forma divertida de incentivo à leitura para espalhar conhecimento.
Do mesmo jeito que quase ninguém adentrou a literatura pelos clássicos, o mesmo se dá com a História. O estudo do tempo começa, muitas vezes, com Laurentino Gomes para depois entrar em autores como Jacques Le Goff, por exemplo.
A História mais acessível
Outros historiadores também conseguem munir-se com o rigor acadêmico e a linguagem acessível, como Mary del Priore, pós-doutora na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, que se dedicou muito ao estudo das mulheres, negros e a sexualidade na história brasileira. Muitos de seus livros chegaram à colocação de best-sellers, como o ganhador do prêmio Jabuti de literatura: História das Mulheres no Brasil.
Há, contudo, livros escritos por não-historiadores que abusam de revisões e ausência de checagem e rigor histórico. Até mesmo Laurentino Gomes e Eduardo Bueno recebem suas críticas, porém mais leves: generalizações, alguns deslizes e, claro, por não escreverem bem.
Esses fatos demonstram que o brasileiro tem, e sempre teve, interesse por sua história, mas antes faltava uma linguagem mais acessível, literária, para dar um sabor agridoce aos feitos que nos formaram como nação.
O tupiniquim que lê ou a história escrita por quem perdeu
Em sua obra-prima, O Queijo e os Vermes, o historiador italiano Carlo Ginzburg nos oferece uma visão quase inédita da História — neste caso, a inquisição na Itália.

O livro dá vida à história verídica de Menocchio, um moleiro que sabia ler e foi condenado pela inquisição por espalhar uma cosmogonia própria, onde pregava o mundo surgido da putrefação de um grande queijo. “Ele era um homem como nós”, explica Ginzburg na introdução.
O livro pertence à micro-história — um gênero que parte do estudo dos “pequenos personagens” para explicar os conceitos macroscópicos de seu tempo. Nesse gênero, o “operário que lê”, do poema de Brecht, supera os príncipes, reis e generais nas narrativas, como Ginzburg nos inspira nas primeiras páginas.
“Quem construiu Tebas, a das sete portas? Nos livros vem o nome dos reis, Mas foram os reis que transportaram as pedras? Babilônia, tantas vezes destruída, Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas Da Lima Dourada moravam seus obreiros? No dia em que ficou pronta a Muralha da China, para onde foram os seus pedreiros? A grande Roma Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem triunfaram os Césares? […]”
A micro-história faz muito bem o papel de mudar a lupa dos fatos dos grandes nomes para os pequeninos, os que se perderam entre atas e notas de rodapé. Os historiadores ajudam a ressuscitar muitos personagens que foram enterrados pelo tempo e narrativas vencedoras.
No Brasil, quais seriam as perguntas de um tupiniquim que lê a nossa história?
Quem descobriu o Brasil? Foram os navegadores e reis ou também marujos a bordo? E quem levantou Brasília, foram arquitetos e presidentes ou os candangos do planalto? E os índios, como eles desapareceram? Quem escravizou os africanos e os pôs em navios para longe de casa? Foram imperadores e magistrados ou os trabalhadores e imigrantes que construíram a nação? Quem pode escrever sobre História em um país que pouco conhece sua história: apenas os historiadores e acadêmicos ou também as pessoas comuns, interessadas no passado?
A resposta deixa-se ler nas entrelinhas do tempo.
Bons livros para começar a ler História:
A batalha de papel — Mauro César Silveira: sobre o papel da imprensa na Guerra do Paraguai;
A Viagem dos descobrimentos — Eduardo Bueno: abordando de prosa rítmica os “descobrimentos” do Brasil;
Arrancados da terra — Lira Neto: sobre a presença de judeus no Nordeste e fundação de Nova Iorque;
Bertha, Sofia e Rachel — Isabel Vincent: um exemplo de micro-história brasileira contando a saga de três polacas judias seduzidas pelo tráfico internacional de prostitutas ao Brasil;
Escravidão Volumes I e II — Laurentino Gomes: com uma prosa rítmica sobre uma das maiores máculas de nossa história, a escravidão;
Histórias íntimas — Mary del Priore: sobre a história da sexualidade no Brasil, da colônia aos dias de hoje;
O queijo e os vermes — Carlo Ginzburg: um dos clássicos da micro-história, traz a história do moleiro Menocchio, que foi condenado por defender uma cosmogonia herege de que o mundo era como um queijo, e os homens e Deus, os vermes;
Traição: um jesuíta a serviço do Brasil Holandês — Ronaldo Vainfas: a história de um padre que virou a casaca e passou a lutar ao lado dos holandeses no Nordeste, antes de reiniciar a vida como calvinista no país europeu;
Trilogia: 1808; 1822, 1889 — Laurentino Gomes: três livros sobre três datas chaves para entender o nascimento do Brasil moderno, a fuga da família real, a independência e a república.
Referências:
1808 — Laurentino Gomes, Planeta
1822 — Laurentino Gomes, Nova Fronteira
1889 — Laurentino Gomes, Globo Livros
A Viagem dos Descobrimentos — Eduardo Bueno, Estação Brasil
Acadêmicos na berlinda ou como cada um escreve a História? — Jurandir Malerba, disponível nesse link
Escravidão, Volume I — Laurentino Gomes, Globo Livros
O queijo e os vermes — Carlo Ginzburg, Companhia das Letras
Perguntas de um operário que lê — Bertold Brecht
[1] Acadêmicos na berlinda ou como cada um escreve a História? — Jurandir Malerba, p. 36
Créditos HL
O texto acima é de autoria de Eduardo Reitz. A revisão é de Fernando Araújo. A edição é de Nicole Ayres, Editora Assistente do Homo Literatus.
Originally published at https://homoliteratus.com on November 29, 2021.