200 anos de Anita Garibaldi

Eduardo Reitz
6 min readSep 2, 2021

Nos dias de hoje, é certo que a heroína dos dois mundos seria rechaçada por muitos que a rendem homenagens.

Uma época fervilhante

Nos tempos do segundo reinado, o Brasil era um caldeirão prestes a transbordar. Embora o francês Charles Ribeyrolles, ao passar pelas terras verde-amarelas, tenha documentado que “há anos não [havia] mais processos políticos, nem prisioneiros de Estado, nem processos de imprensa…”, não é certo dizer que foi um período propício para a liberdade.

A Guerra do Paraguai, em 1864, dividiu as páginas da história militar brasileira e a questão Christie levantou os ânimos do país ao peitar em ambiente internacional a poderosa Inglaterra — mas não eram apenas as questões externas que faziam borbulhar o Império.

De norte a sul já havia quem questionasse o despotismo esclarecido do sonolento Imperador e espalhava dúvidas entre a população. Dificilmente o Brasil terá uma imprensa tão liberal como naqueles anos: todos as semanas, os jornaleiros entregavam periódicos (alguns redigidos a mão) com palavras de liberdade e criticando abertamente o imperador.

Havia ainda dentro das fronteiras do Império movimentos que davam um passo além em seus princípios. Eles não queriam apenas a liberdade política, mas liberdade de poder redesenhar o mapa do país (e, se possível, criar o próprio). Os movimentos separatistas mais engajados do período eram a Insurreição Praieira, de Pernambuco, e a Revolução Farroupilha, no extremo sul.

Dessa amálgama fervilhante surge uma das maiores personagens de nossa história. Em uma história dominada pelo protagonismo masculino, Anita Garibaldi, de cabelos negros e olhos profundos, escreveria junto do contraditório e interessantíssimo, Giuseppe Garibaldi, seus nomes nas páginas do Brasil, lutando até os últimos dias por aquilo que acreditava e a libertação dos povos.

Biografia de uma revolucionária

A vida de Anita Garibaldi daria um filme de aventura. Muito se especula sobre a vida de Anita, com uma biografia permeada de lendas e distorções, mas, na verdade, pouco se sabe. Nascida Ana Maria de Jesus Ribeiro na vila de Laguna (SC), a jovem adotava hábitos que causavam burburinhos nos círculos sociais. Ela sabia montar a cavalo, casou-se aos 14 anos com um sapateiro, mas escolheu não ter filhos, e tinha um interesse extenso pela política nacional — um tempo de ouro para se interessar por esse assunto!

O segundo reinado até hoje deixa historiadores insones tentando descrever sua complexidade. Num remoto mês de junho de 1839, a vida de Anita iria se misturar para sempre com a história. “Entramos, e a primeira pessoa que se aproximou era aquela cujo aspecto me tinha feito desembarcar. Era Anita! A mãe de meus filhos! A companhia de minha vida, na boa e na má fortuna”, documentou o revolucionário, Giuseppe Garibaldi, sobre a quele dia. Um amor à primeira vista! Ele estava na cidade portuária para fundar com Davi Canabarro uma república independente e liberal nos trópicos: República Catharinense Livre e Independente, mais conhecida como República Juliana.

O Clube Farroupilha deve seu nome ao conflito de farrapos

A relação do casal iria se aquentar, até o fatídico dia de 20 de outubro do mesmo ano, Ana entregaria sua vida à causa. Do dia para a noite ela trocaria os aventais pela revolução. Na garupa de Giuseppe, ela abandonava sua pacata vila para se juntar aos farrapos. Ela sentia pela primeira vez o sabor agridoce da Liberdade.

O casal passaria o resto dos dias participando de guerrilhas pela independência de países na América do Sul e Europa como numa produção hollywoodiana. Ela com os cabelos ao vento como uma amazona, ele com barba hirsuta e camisa vermelha de revolucionário. O amor deles iria crescer com as batalhas e os perigos que sobrevivessem.

Eles iriam defender a balas muitas ideias modernas (e perigosas) para o período. A igualdade de homens e mulheres, entre pessoas de peles diferentes, a independência e as liberdades políticas. Seria errado dizer que os dois são exemplos de liberais para o padrão moderno, mas em muitos pontos, interessantes à mentalidade hodierna. Muito tempo depois da morte de Anita, já no fim da vida, Garibaldi volveria sua revolução à esquerda pacifista, chegando a se declarar socialista (mas seria logo desmentido por Marx). Empurrando-os em uma conceituação moderna, os dois seriam considerados liberais-nacionalistas.

Anita Garibaldi iria morrer precocemente, aos 29 anos, por complicações de uma gravidez à costa da Itália. Diferente do revolucionário, Anita conservaria uma imagem jovem nos retratos. A história, entretanto, não a pintaria tão bem no início. Na Itália, onde o corpo descansa até hoje, sua imagem foi enxugada pelos fascistas (até se tornar um símbolo) e seria condenada pela igreja (que se pudesse, a condenaria à fogueira). “É evidente que a figura de Anita estava completamente ausente nas publicações católicas, onde era impossível enfraquecer a liderança ideológica da esposa de Garibaldi”, explica Silvia Cavicchioli em Storia e mito di Anita Garibaldi (pág. 175) “e qualquer abordagem à brasileira era imprópria”.

Apesar de todas as lacunas de sua biografia e falta de conhecimento sobre seu pensamento político, Anita é uma figura ímpar na história, que merece amplos debates e estudos. Em sua última carta antes de morrer, é certo que sua vida cinematográfica tenha passado diante os olhos. À irmã, provavelmente ditando as palavras da confissão epistolar, ela teria dito não estar arrependida. “Agora estou aqui, no fim do caminho! O que posso lhe dizer? Que faria tudo de novo? Acho mesmo que sim!”, e deixou seu legado para a história.

Para saber mais sobre a vida da guerrilheira, recomenda-se visitar a exposição virtual 200 Anos de Anita Garibaldi

200 anos como lição

Não são poucos os monumentos à Anita Garibaldi — fora as inúmeras escolas, avenidas e praças com seu nome, ainda existem duas cidades em sua homenagem: Anita Garibaldi e Anitápolis.

Embora muitos não façam ideia de sua história, não seria exagero dizer que ela é uma das mais importantes personagens do Brasil.

De forma contraditória, não se deixa de notar que muitos políticos e personalidades que enchem a boca para homenageá-la seriam os mesmos a mandar para as fogueiras da inquisição a Joana d’Arc brasileira.

Como muito se sabe, mulheres que defendem posições liberais recebem perseguições constantes de pessoas do “lado certo da política”, o famigerado machismo do bem (como no vídeo do Porta dos Fundos escarneando políticas do partido Novo). Além disso, certamente ela seria acusada de ser uma terrorista anticonstitucional: apenas defender uma hipotética secessão nacional é considerado crime e atentado contra a segurança nacional (artigo 11 da Lei 7.170/1983, segundo TRE-SC).

A imagem da heroína foi redesenhada, retocada e reinterpretada ao longo dos anos, ao ponto que deve se separar o mito Anita Garibaldi de Ana Maria de Jesus Ribeiro. Como acontece com muitas figuras históricas, ela foi transformada em símbolos que não sabemos ao certo se gostaria de ser: “a feminista antes do feminismo”; “guerrilheira da liberdade” e “heroína do Fascismo garibaldino”.

Vale lembrar que Anita Garibaldi não se encaixaria em nosso conceito atual de “liberal” (ou neoliberal, como pregam prolixamente alguns intelectuais), o que seria na verdade um anacronismo trágico. Mas não nos esqueçamos: existe liberalismo fora do cânone liberal! Isso tudo, na verdade, pouco importa — em seus 200 anos, Anita Garibaldi deve ser festejada e estudada por nós como um exemplo da defesa apaixonada e sincera pela liberdade.

Referências:

História do Liberalismo Brasileiro — Antônio Paim

Storia e mito di Anita Garibaldi — Silvia Cavicchioli

Anita Garibaldi — Heloisa Prieto

Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/79307/153071.pdf;jsessionid=378B3ECF551DFB0AA9B4376B5C0A4228?sequence=1 Acesso em: 26/08/2021

Originally published at https://www.clubefarroupilha.com.br.

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

Eduardo Reitz
Eduardo Reitz

Written by Eduardo Reitz

Tentando entender o mundo com a ponta da caneta

No responses yet

Write a response